Por Carol Grechi
Baseado em uma história (quase) real
***
O sono era tão forte que as tarefas agendadas para aquela
tarde pareceram perder a urgência. A tempestade castigava a casa com o vento e
do céu escuro vinham as gotas que
batucavam no vidro da janela. Com a
promessa de que iria apenas deitar um pouco para descansar, ela adormeceu.
***
Lara se viu correndo por uma floresta, rodeada pelos tons de
um outono com temperatura agradável. Foi reduzindo a velocidade ao entrar em
uma grande clareira, com casas rústicas formando um complexo de pousadas em
meio à natureza. Uma mulher de meia idade com credenciais penduradas nas mãos
lhe reconheceu enquanto lhe entregava uma.
- Achei que tu não vinhas. Tu és do jornal, não?
- Sim. – Respondeu a garota ainda recuperando o fôlego,
enquanto estendia o braço para apanhar o crachá de imprensa.
Caminhando com curiosidade, aproximou-se de um pavilhão de
madeira que ocupava uma grande extensão a sua direita. Chegando à porta viu
umas sete pessoas, todos jovens e conversando, indiferentes aos dois homens que
entravam no local. Eram eles a razão de ela estar ali.
Aproximou-se com uma folha em branco e uma caneta em mãos,
olhando para o primeiro que entrava.
- Um autógrafo, Gues?!
Dos olhos azuis ela recebeu um sim, mas, o produtor que
vinha logo atrás sentenciou um não ao apressar o músico para que entrasse. Logo
adiante vinha ele.
- Dek, um autógrafo, por favor...
Os olhos castanhos que ela tanto conhecia demoraram-se nos
dela.
- Tem muita gente... – respondeu se desculpando. A frase
pareceu ter certa comicidade, levando-se em conta que o “muita gente”
referia-se as indiferentes sete pessoas em volta.
- Mas só eu estou te pedindo. – Lara sabia ser teimosa.
Um sorriso contido
começava a brotar no canto esquerdo dos lábios dele enquanto começava a
escrever algo na folha em branco. O produtor lançou um olhar de urgência pela
porta. Dek a encarou com uma expressão indefinível e a segurou pelo braço com
delicadeza, conduzindo-a para dentro do local junto com ele.
Algumas mesas de madeira estendiam-se ao longo daquele salão
rústico, com bancos compridos, também de madeira. Gues estava sentado sozinho
na ponta de uma das mesas. Dek sentou ao seu lado e convidou Lara a se acomodar
em frente a eles.
Começaram a conversar sobre música e sobre o local, uma
conversa com risadas, agradável e natural.
Dek fitava Lara com uma intensidade desconcertante. Um meio sorriso sempre nos lábios.
- Tu te lembras dela nos shows? – Perguntou a Gues que
brincava com uma palheta entre os dedos.
- Hummm... Não... – respondeu em tom de desculpas enquanto
Lara sorria.
- Eu lembro.
Apenas essas duas palavras fizeram os batimentos cardíacos
da menina dobrarem de velocidade, impossível refrear os efeitos daquele olhar
repleto de mistério e cumplicidade.
Com a boca seca, Lara olhou para Gues e enumerou os shows em
que havia ido, as cidades e as situações em que haviam se visto. Sentindo um
desconforto de talvez estar sendo inconveniente, ela perguntou se eles ficariam
por mais algum tempo ali. Gues respondeu que sim e lhe convidou para lhes fazer
companhia até irem embora.
Ela olhava para Dek e não conseguia parar de sorrir. Os
músculos da face já estavam em cãibras e nos olhos brotavam pequenas lágrimas
de satisfação.
- Ainda não acredito que finalmente estou conversando
contigo. – Disse a ele meio sem jeito.
As mãos que tanto ela admirava, dominando com maestria as
cordas de guitarras e violões, as mãos que um dia lhe entregaram uma palheta
após uma canção, essas mãos avançaram por sobre a mesa e lentamente seguraram
as suas. O toque macio veio acompanhado de um sorriso com ares de ternura. Para
a surpresa dela o contato não se desfez, ao invés disso ele acariciava
suavemente a pele clara de sua mão, com o dedo polegar desenhando retas
contínuas e ternas.
- Obrigada mais uma vez... Não sabe quanto tempo eu esperei
por esse dia. – Ela ainda conseguia falar com a voz falhando.
Dos lábios dele, veio a tradução do que olhos diziam a ela
desde que haviam entrado no local.
- Como dizer não com esses teus olhos, com esse teu jeito
todo charmoso de olhar... ?
Ela sentiu na hora. Sentiu o clima se tornando mais palpável
entre eles. Sentiu a pele arrepiar e a confusão tomar conta de seus
pensamentos. Pensou em Fred, seu namorado, e teve a certeza de que jamais o
trairia. Olhou para as duas esferas castanhas e brilhantes que ela tanto
conhecia, dos DVDs, da televisão, dos shows... Sempre soube que se entendiam
pelo olhar, mesmo sem terem trocado uma única palavra. Aqueles olhos agora
estavam ali, lhe sorrindo com ar de marotos...
A vontade de realizar um desejo até então platônico e a
fidelidade para com seu amor... Ali, lado a lado, brigando por um espaço em sua
mente confusa e dividida.
Alguém da produção chamou Dek à porta, ele largou as mãos
dela devagar, sempre sorrindo com ar travesso, e se dirigiu à entrada do salão.
Lara baixou os olhos para a o local em que a pouco ele acariciava.
Suas mãos ainda guardavam o calor dele. Ao levantar os olhos, deparou-se com a
imensidão azul do olhar de Gues, com um sorriso de compreensão e consolo.
- Eu percebi a tua hesitação, te entendo, sei o que tu estás
sentindo. Também sei o que tu vais escolher. – Disse indicando com a cabeça a
aliança de prata na mão direita da menina. – Deixa que eu vou falar com ele.
Saíram os três, acompanhados por um integrante da equipe de
produção, para desbravar o local. Era lindo, com folhas secas dançando e
farfalhando com o vento levemente frio. Riam das mesmas piadas, entendiam-se
sem falar, um desfrutando da companhia do outro. Mas Lara ainda sentia o calor
nos olhos de Dek. Entendeu o que ele ainda queria.
Entraram em uma casa grande, também de madeira, como tudo ao
redor. Dois andares, escadas bonitas, quartos enormes. Ficaram em um deles, que
ocupava quase metade do segundo andar. Gues brincava com o rapaz da produção,
alguma implicação quanto a times de futebol, pois entre as risadas nenhum dos
dois desistia de zombar do outro. Lara acompanhava a teimosia de ambos e ria...
Feliz de estar ali.
Ela desviou o olhar do embate futebolístico e seus olhos
pousaram na cena que jamais lhe sairia da cabeça. Dek estava deitado em uma das
camas do quarto, uma cama enorme com um edredom branco, alvíssimo. Em contraste
com o fundo claro ela podia ver com ainda mais nitidez a cor de seus olhos, que
acompanhados de um sorriso tão branco quanto a coberta da cama, lhe diziam
muitas coisas.
Aqueles olhos estavam lhe convidando. Lhe provocando. Mais
uma conversa sem palavras, algo que os dois entendiam desde o primeiro show em
que se viram.
Uma agonia tomou o peito da menina. O peito, a mente, a
respiração... Tudo pareceu descompassar. Naqueles segundos em frente à cama,
percebeu que estava tremendo. Não conseguia pensar direito, só de imaginar...
Com uma dorzinha latejando no peito (e em vários outros
lugares do corpo) ela sabia que não seria capaz de dar um passo a frente. Fred
era quem amava, nunca nem sequer pensou em traí-lo, tão abominável e estúpida
lhe parecia a idéia. Agora estava ali, naquela “prova de resistência”
silenciosa.
Depois de alguns minutos que pareceram durar uma eternidade,
ele levantou-se e sorriu ainda mais ao passar a centímetros dela.
Ainda riram mais um pouco da interminável discussão entre
Gues e o amigo, que davam voltas na conversa e acabavam parando novamente no
duelo de seus times. Dek ainda olhava Lara com ares de carinho, parecendo se
conformar com a situação de “quer, mas não quer”... Seus olhos se demoraram
alguns segundo na aliança dela, e ao fitar mais uma vez aqueles lábios fartos,
nariz pequeno e olhos negros de cílios longos, ele piscou devagar e balançou a
cabeça lentamente, como que compreendendo.
Na hora de se despedirem, em meio ao bosque e às folhas
sépia, Gues abraçou Lara com carinho, e disse que havia se divertido muito na
companhia dela, adorou as conversas e adorou conhecê-la.
Enquanto isso a alguns metros, Dek pegou um pequeno spray em
seu bolso e borrifou em si mesmo disfarçadamente. Quando Gues afastou-se de
Lara, ele veio em direção a ela, ainda com aquela intensidade muda.
Dek aproximou-se bem de Lara e lhe envolveu em um abraço
apertado e acolhedor. Ela ficou anestesiada com o perfume que ele colocara, o
cheiro parecia lhe prender, revirava seus sentidos. Ela teve consciência do
calor “a mais” naquele abraço que nenhum dos dois interrompia. Poderiam ficar
ali, num ciclo eterno de troca de sentimentos que não precisavam ser
pronunciados ou explicados.
Com as pernas meio bambas ela precisou de muita força e
determinação para afrouxar o abraço e encará-lo mais uma vez. Aqueles olhos... Atravessaram-na
e lhe falaram com uma voz doce que só ela podia ouvir, em um lugar que só ele
tinha acesso, em algum lugar guardado na mente de Lara. O que ele disse ficou
gravado ali, mesmo após o sonho ir se diluindo, tornando as imagens mais fracas
e o rosto de Dek mais distante.
***
Ela abriu os olhos lentamente, acordando com um sentimento
confuso, aliás, com vários...
Queria não ter acordado tão cedo, ainda podia sentir os
acordes do perfume que lhe embriagou. Lembrou do quanto se divertiu com Gues e,
do calor daquele último abraço com Dek, apertado e demorado, lento na medida
certa... Com mil intenções...
Lembrou-se do carinho em sua mão, do clima que a atordoava,
dos olhos que a queriam e sorriam zombando... Dizendo que sabiam dos
sentimentos dela, sempre souberam...
Mas acima de tudo, ela lembrou-se de como tinha certeza de
que, um intenso momento que desejava não era o suficiente para vencer a vontade
de passar a vida inteira ao lado do homem que amava. O futuro pai de seus
filhos, quem lhe ensinou as maravilhas e as dificuldades de se amar alguém...
Voltou ao momento mais decisivo do sonho, onde teve a
certeza de que não conseguiria fazer nada, uma certeza tão grande que logo
cortava o “e se...”.
“E se” ela tivesse sentado ao lado de Dek, lá deitado,
sorridente e provocante, na cama branca?
Sua imaginação não conseguia ir adiante. Só havia um espaço
vazio após esse “e se...”.
O amor de verdade competiu em sonho com o “amor” de
mentira... E venceu.
Ela sempre soube que seria assim.
No mundo real seu amor era indiscutível... Inabalável.
No mundo dos sonhos, alguns bons momentos já eram o
suficiente.
***