20.9.12

Olhares castanhos, estranhos sinais


Por Carol Grechi



Baseado em uma história (quase) real

***
O sono era tão forte que as tarefas agendadas para aquela tarde pareceram perder a urgência. A tempestade castigava a casa com o vento e do céu escuro vinham as  gotas que batucavam no vidro da janela.  Com a promessa de que iria apenas deitar um pouco para descansar, ela adormeceu.

***
Lara se viu correndo por uma floresta, rodeada pelos tons de um outono com temperatura agradável. Foi reduzindo a velocidade ao entrar em uma grande clareira, com casas rústicas formando um complexo de pousadas em meio à natureza. Uma mulher de meia idade com credenciais penduradas nas mãos lhe reconheceu enquanto lhe entregava uma.

- Achei que tu não vinhas. Tu és do jornal, não?
- Sim. – Respondeu a garota ainda recuperando o fôlego, enquanto estendia o braço para apanhar o crachá de imprensa.

Caminhando com curiosidade, aproximou-se de um pavilhão de madeira que ocupava uma grande extensão a sua direita. Chegando à porta viu umas sete pessoas, todos jovens e conversando, indiferentes aos dois homens que entravam no local. Eram eles a razão de ela estar ali.

Aproximou-se com uma folha em branco e uma caneta em mãos, olhando para o primeiro que entrava.
- Um autógrafo, Gues?!
Dos olhos azuis ela recebeu um sim, mas, o produtor que vinha logo atrás sentenciou um não ao apressar o músico para que entrasse. Logo adiante vinha ele.
- Dek, um autógrafo, por favor...
Os olhos castanhos que ela tanto conhecia demoraram-se nos dela.
- Tem muita gente... – respondeu se desculpando. A frase pareceu ter certa comicidade, levando-se em conta que o “muita gente” referia-se as indiferentes sete pessoas em volta.
- Mas só eu estou te pedindo. – Lara sabia ser teimosa.

 Um sorriso contido começava a brotar no canto esquerdo dos lábios dele enquanto começava a escrever algo na folha em branco. O produtor lançou um olhar de urgência pela porta. Dek a encarou com uma expressão indefinível e a segurou pelo braço com delicadeza, conduzindo-a para dentro do local junto com ele.

Algumas mesas de madeira estendiam-se ao longo daquele salão rústico, com bancos compridos, também de madeira. Gues estava sentado sozinho na ponta de uma das mesas. Dek sentou ao seu lado e convidou Lara a se acomodar em frente a eles.

Começaram a conversar sobre música e sobre o local, uma conversa com risadas, agradável e natural.
Dek fitava Lara com uma intensidade desconcertante.  Um meio sorriso sempre nos lábios.
- Tu te lembras dela nos shows? – Perguntou a Gues que brincava com uma palheta entre os dedos.
- Hummm... Não... – respondeu em tom de desculpas enquanto Lara sorria.
- Eu lembro.

Apenas essas duas palavras fizeram os batimentos cardíacos da menina dobrarem de velocidade, impossível refrear os efeitos daquele olhar repleto de mistério e cumplicidade.

Com a boca seca, Lara olhou para Gues e enumerou os shows em que havia ido, as cidades e as situações em que haviam se visto. Sentindo um desconforto de talvez estar sendo inconveniente, ela perguntou se eles ficariam por mais algum tempo ali. Gues respondeu que sim e lhe convidou para lhes fazer companhia até irem embora.

Ela olhava para Dek e não conseguia parar de sorrir. Os músculos da face já estavam em cãibras e nos olhos brotavam pequenas lágrimas de satisfação.
- Ainda não acredito que finalmente estou conversando contigo. – Disse a ele meio sem jeito.
As mãos que tanto ela admirava, dominando com maestria as cordas de guitarras e violões, as mãos que um dia lhe entregaram uma palheta após uma canção, essas mãos avançaram por sobre a mesa e lentamente seguraram as suas. O toque macio veio acompanhado de um sorriso com ares de ternura. Para a surpresa dela o contato não se desfez, ao invés disso ele acariciava suavemente a pele clara de sua mão, com o dedo polegar desenhando retas contínuas e ternas.
- Obrigada mais uma vez... Não sabe quanto tempo eu esperei por esse dia. – Ela ainda conseguia falar com a voz falhando.

Dos lábios dele, veio a tradução do que olhos diziam a ela desde que haviam entrado no local.
- Como dizer não com esses teus olhos, com esse teu jeito todo charmoso de olhar... ?

Ela sentiu na hora. Sentiu o clima se tornando mais palpável entre eles. Sentiu a pele arrepiar e a confusão tomar conta de seus pensamentos. Pensou em Fred, seu namorado, e teve a certeza de que jamais o trairia. Olhou para as duas esferas castanhas e brilhantes que ela tanto conhecia, dos DVDs, da televisão, dos shows... Sempre soube que se entendiam pelo olhar, mesmo sem terem trocado uma única palavra. Aqueles olhos agora estavam ali, lhe sorrindo com ar de marotos...

A vontade de realizar um desejo até então platônico e a fidelidade para com seu amor... Ali, lado a lado, brigando por um espaço em sua mente confusa e dividida.
Alguém da produção chamou Dek à porta, ele largou as mãos dela devagar, sempre sorrindo com ar travesso, e se dirigiu à entrada do salão.

Lara baixou os olhos para a o local em que a pouco ele acariciava. Suas mãos ainda guardavam o calor dele. Ao levantar os olhos, deparou-se com a imensidão azul do olhar de Gues, com um sorriso de compreensão e consolo.
- Eu percebi a tua hesitação, te entendo, sei o que tu estás sentindo. Também sei o que tu vais escolher. – Disse indicando com a cabeça a aliança de prata na mão direita da menina. – Deixa que eu vou falar com ele.

Saíram os três, acompanhados por um integrante da equipe de produção, para desbravar o local. Era lindo, com folhas secas dançando e farfalhando com o vento levemente frio. Riam das mesmas piadas, entendiam-se sem falar, um desfrutando da companhia do outro. Mas Lara ainda sentia o calor nos olhos de Dek. Entendeu o que ele ainda queria.

Entraram em uma casa grande, também de madeira, como tudo ao redor. Dois andares, escadas bonitas, quartos enormes. Ficaram em um deles, que ocupava quase metade do segundo andar. Gues brincava com o rapaz da produção, alguma implicação quanto a times de futebol, pois entre as risadas nenhum dos dois desistia de zombar do outro. Lara acompanhava a teimosia de ambos e ria... Feliz de estar ali.
Ela desviou o olhar do embate futebolístico e seus olhos pousaram na cena que jamais lhe sairia da cabeça. Dek estava deitado em uma das camas do quarto, uma cama enorme com um edredom branco, alvíssimo. Em contraste com o fundo claro ela podia ver com ainda mais nitidez a cor de seus olhos, que acompanhados de um sorriso tão branco quanto a coberta da cama, lhe diziam muitas coisas.
Aqueles olhos estavam lhe convidando. Lhe provocando. Mais uma conversa sem palavras, algo que os dois entendiam desde o primeiro show em que se viram.

Uma agonia tomou o peito da menina. O peito, a mente, a respiração... Tudo pareceu descompassar. Naqueles segundos em frente à cama, percebeu que estava tremendo. Não conseguia pensar direito, só de imaginar...

Com uma dorzinha latejando no peito (e em vários outros lugares do corpo) ela sabia que não seria capaz de dar um passo a frente. Fred era quem amava, nunca nem sequer pensou em traí-lo, tão abominável e estúpida lhe parecia a idéia. Agora estava ali, naquela “prova de resistência” silenciosa.
Depois de alguns minutos que pareceram durar uma eternidade, ele levantou-se e sorriu ainda mais ao passar a centímetros dela.

Ainda riram mais um pouco da interminável discussão entre Gues e o amigo, que davam voltas na conversa e acabavam parando novamente no duelo de seus times. Dek ainda olhava Lara com ares de carinho, parecendo se conformar com a situação de “quer, mas não quer”... Seus olhos se demoraram alguns segundo na aliança dela, e ao fitar mais uma vez aqueles lábios fartos, nariz pequeno e olhos negros de cílios longos, ele piscou devagar e balançou a cabeça lentamente, como que compreendendo.

Na hora de se despedirem, em meio ao bosque e às folhas sépia, Gues abraçou Lara com carinho, e disse que havia se divertido muito na companhia dela, adorou as conversas e adorou conhecê-la.
Enquanto isso a alguns metros, Dek pegou um pequeno spray em seu bolso e borrifou em si mesmo disfarçadamente. Quando Gues afastou-se de Lara, ele veio em direção a ela, ainda com aquela intensidade muda.

Dek aproximou-se bem de Lara e lhe envolveu em um abraço apertado e acolhedor. Ela ficou anestesiada com o perfume que ele colocara, o cheiro parecia lhe prender, revirava seus sentidos. Ela teve consciência do calor “a mais” naquele abraço que nenhum dos dois interrompia. Poderiam ficar ali, num ciclo eterno de troca de sentimentos que não precisavam ser pronunciados ou explicados.

Com as pernas meio bambas ela precisou de muita força e determinação para afrouxar o abraço e encará-lo mais uma vez. Aqueles olhos... Atravessaram-na e lhe falaram com uma voz doce que só ela podia ouvir, em um lugar que só ele tinha acesso, em algum lugar guardado na mente de Lara. O que ele disse ficou gravado ali, mesmo após o sonho ir se diluindo, tornando as imagens mais fracas e o rosto de Dek mais distante.

***
Ela abriu os olhos lentamente, acordando com um sentimento confuso, aliás, com vários...
Queria não ter acordado tão cedo, ainda podia sentir os acordes do perfume que lhe embriagou. Lembrou do quanto se divertiu com Gues e, do calor daquele último abraço com Dek, apertado e demorado, lento na medida certa... Com mil intenções...

Lembrou-se do carinho em sua mão, do clima que a atordoava, dos olhos que a queriam e sorriam zombando... Dizendo que sabiam dos sentimentos dela, sempre souberam...

Mas acima de tudo, ela lembrou-se de como tinha certeza de que, um intenso momento que desejava não era o suficiente para vencer a vontade de passar a vida inteira ao lado do homem que amava. O futuro pai de seus filhos, quem lhe ensinou as maravilhas e as dificuldades de se amar alguém...

Voltou ao momento mais decisivo do sonho, onde teve a certeza de que não conseguiria fazer nada, uma certeza tão grande que logo cortava o “e se...”.

“E se” ela tivesse sentado ao lado de Dek, lá deitado, sorridente e provocante, na cama branca?
Sua imaginação não conseguia ir adiante. Só havia um espaço vazio após esse “e se...”.

O amor de verdade competiu em sonho com o “amor” de mentira... E venceu.

Ela sempre soube que seria assim.
No mundo real seu amor era indiscutível... Inabalável.

No mundo dos sonhos, alguns bons momentos já eram o suficiente.

***

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