Por Carol Grechi
Alô, dona de casa! Está passando na sua rua o carro da pamonha... Pamonha, pamonha, pamonha...
Alô, criançada! Está passando na sua rua o carro do picolé... [trilha sonora] “Brincadeira de criança, como é bom, como é bom...”
Alô, desempregado! Está passando na sua rua o carro das frases de auto-ajuda... São quatro frases por apenas um real! “Não desista”, “você é capaz”, “a culpa nunca é sua”, “Pelo menos você está vivo” e muito mais! Aproveite! São quatro frases por apenas um real... [trilha sonora] “Weeeee... Are the chaaaampions, my frieeeend...”
Pois é “leitorinhos” (como diria meu muso literário inspirador, David Coimbra)...
Um amigo dum amigo meu perdeu o emprego esses dias e resolvi escrever sobre o caso dele. O Bob (que era conhecido assim por ter um baita dum cabeção, tipo o do personagem daquele desenho do Fantástico mundo de... De... De quem, mesmo?) era um trabalhador comum, com sua vida comum e seus problemas comuns. O que tornava Bob diferente era um detalhe que às vezes nem ele mesmo entendia.
Bob tinha um grande coração (além de um grande cabeção) e isso fazia dele alguém diferente.
As pessoas que trabalhavam com Bob em seu emprego comum também eram incomuns. Eram todas engraçadas, inteligentes, competentes, bonitas, às vezes irritantes, mas, em sua maioria pessoas simplesmente apaixonantes.
Estar na companhia destes colegas fazia as tardes parecerem mais longas, as noites mais bonitas e o barulho do crachá/ponto eletrônico parecer mais afinado em seu apito diário às 14:00 (às vezes 14:20, quando Bob perdia o ônibus...).
Bob sempre esperava ansioso pelo dia seguinte, imaginando quais seriam as piadas da vez, as músicas da vez e as histórias da vez na redação. Ah, sim, falei que Bob trabalhava em jornal? Aham, um jornal muito bom, por sinal...
Um dia, quando uma semana excepcionalmente divertida no trabalho chegava ao fim, Bob percebeu algo diferente. Seu chefe, que era muito querido, estava estranhamente estranho. Redundantemente bravo/esquivo/triste e anormal. No meio da tarde Bob descobriu o porquê.
Queria não ter descoberto, queria ter reprisado as primeiras horas daquela tarde de sexta-feira, como um disco arranhado na melhor frase da música... Um repeteco eterno pra que ela não precisasse nunca chegar ao fim.
Mas chegou. A música, a tarde, a razão do chefe não estar sorrindo. Chegou a notícia (nada mais justo, em um jornal) de que Bob estava demitido.
Aliás, “sua saída havia sido pedida”, por motivos que o pobre Bob julgou não serem justos, mas, sendo o jornalista que era, sabia que naquele momento seu julgamento estava obviamente sendo imparcial devido às circunstâncias, o que não o permitia analisar o caso com clareza.
A verdade é que não havia nada a ser analisado. Lutar contra uma demissão é como tentar nadar sem saber nadar. Você pode até se esforçar pra fazer seus argumentos boiarem por um tempo, mas depois você enfraquece e afunda no infinito mar do “quem manda mais”.
Bob descobriu porque seu patrão outrora querido estava tão bravo. Ele estava triste por ser o portador da notícia, por reportar o adeus ao seu funcionário. Estava fazendo seu papel numa peça onde o autor esquecera de escrever o resto das falas de Bob.
A menos que as fungadas e soluços sejam consideradas palavras, o silêncio caiu como uma pedra na garganta do emotivo e cabeçudo Bob. Abraços dos colegas de quem ele mais gostava faziam o jornalista não entender o que estava sentindo.
Depois de muitos minutos lavando os olhos vermelhos no banheiro, conversando com um cara lá de cima que só podia estar de brincadeira, se perguntando como pagar a prestação que vai até março do ano que vem... Bob respirou fundo (o mais fundo que seu nariz congestionado permitiu) e decidiu terminar aquele dia triste deixando uma lembrança boa na mente de cada colega.
Bob havia comprado duas barras de chocolate no dia anterior e guardado par dividir com os amigos na sexta-feira em questão. Com o coração ainda resmungando, Bob partiu uma das barras em inúmeros quadradinhos e as colocou em sua caneca preferida, que sempre deixava no jornal.
Outra coisa que sempre lhe acalmava no trabalho era uma bolinha vermelha, dessas de espuma, que a gente aperta quando sente que o braço está doendo ou quando sente que quer matar o repórter que escreveu um texto tão ruim “que é de cair o c.. da bunda”.
Bob pegou a outra barra de chocolate, a bolinha vermelha, e colocou ambos na mesa de seu chefe querido, que lhe fitou com um meio sorriso pesaroso. A caneca com os quadradinhos de chocolate foi passeando pela redação, enquanto Bob tentava deixar em seus colegas pelo menos uma última lembrança doce de sua presença.
Aliás, a caneca (também vermelha) foi posta sob a mesa de um colega com quem Bob estava se identificando cada vez mais, e que talvez lhe viesse a ser um bom amigo. O colega sorriu e agradeceu, minutos antes de postar uma foto da caneca no Facebook.
Depois disso as ondas de tristeza/verdade iam e voltavam, e uma coisa começou a incomodar Bob fisicamente, mas ele não distinguia o que era.
A noite, em casa, às 2:40 da manhã, sem conseguir dormir, com os olhos inchados de choro, com uma saudade antecipada dos colegas que não mais veria, com a lembrança de cada abraço e cada lágrima disfarçadamente derramada por ele... Bob foi invadido por uma paz triste de quem finalmente compreende. O que ele estava sentindo, era dor.
Não uma dor que se pode apontar com o dedo, não uma dor que passa com Aspirina...
Uma dor invisível de alguém que durante dois meses foi simplesmente feliz por ter uma vida comum, em um emprego comum, ao lado de pessoas que lhe causavam das mais variadas formas um indescritível contentamento diário em meio às notícias. Antes de tentar dormir, eu soube que o Bob, esse amigo dum amigo meu, desejou com todas as suas forças, com toda a graça de suas piadas sem graça, com toda sua inteligência de pessoa cabeçuda, com toda sua carência de alguém com coração molenga... Ele desejou humildemente que seus colegas não o esquecessem... E desejou sinceramente poder escrever um dia uma crônica tão boa quanto esta, pois, ele nunca irá desistir, ele sabe que é capaz, sabe que a culpa nunca será dele, sabe que pelo menos está vivo... E tudo isso, por apenas um Real.
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