Carol Grechi
Novo Hamburgo, Escola Otávio Rosa, terceira série, 1997. Carol e Felipe era amigos inseparáveis. Ela CDF, quietinha e às vezes distraída. Ele bagunceiro, notas baixas e da “turma do fundão”. No recreio ambos iam contra suas definições e saíam abraçados pelo pátio da escola, cantando Mamonas assassinas e parando sempre em determinados pontos pra comentar as lendas da escola, como a do menino que jogou uma pedra de brita na parede do parquinho, a pedra voltou, o acertou na fonte e ele morreu. Frequentemente os dois paravam em frente a tal parede e permaneciam alguns segundos em silêncio, em respeito ao morto que provavelmente nunca existiu.
Os dois passavam tanto tempo juntos que Carol começou a perceber detalhes estranhos em Felipe. Como ele era bonito. Talvez o mais bonito da sala. Ou o mais bonito da escola. Como ela nunca havia notado isso antes? De repente passou a ser algo tão óbvio... Seu melhor amigo era simplesmente lindo. As festas juninas se aproximavam e Carol começou cada vez mais a se incomodar com seus sentimentos estranhos para com Felipe. Com oito anos era a única definição possível, “sentimentos estranhos”.
Inspirada nos romances tortos da Sessão da tarde e nas histórias de contos de fadas, Carol tomou uma decisão. Não podia mais passar a manhã com seu amigo sem que quisesse passar o resto do dia com ele. Iria escrever uma carta.
Armou-se de sua caixa de 24 lápis de cor da Faber Castell, algumas folhas de ofício, lápis, borracha e cola. Escreveu a mais apaixonada das cartas que uma criança de oito anos é capaz de escrever. Como direito a “eu amo você” (como havia visto na Sessão da tarde), desenhos de um casal de mãos dadas que lembravam vagamente as feições de ambos, corações vermelhos com “Carol e Felipe” dentro, e a pergunta que mais pesava na cartinha: Quer namorar comigo?
Fez um envelope, lacrou com um adesivo e escreveu atrás num cantinho: “De: Carol - Para: Felipe”.
Na manhã seguinte foi para a festinha junina, de vestido de chita, trancinhas, sardinhas e tudo mais. Na mochila, a carta que ditaria o futuro das suas férias de julho de 97.
Esperou a hora exata em que Felipe não estivesse perto de sua mesa e foi até lá. Deixou a carta em cima do caderno do amigo, numa grade logo abaixo do tampo da mesa. Saiu com as mãos ainda tremendo e enquanto esperava a resposta, foi brincar com as colegas e comer pé-de-moleque.
Pelas tantas da festinha, o som parou. Quando Carol levantou os olhos deparou-se com a seguinte cena: Um colega que concorria com Felipe no cargo de mais bagunceiro, havia encontrado a sua carta. Mais do que isso, estava de pé na cadeira de Felipe, com a carta aberta. Então ele começou a ler.
Cada palavra, cada “Felipe eu te amo” ficou ecoando pela sala. Antes da visão de Carol ficar completamente embaçada pelas lágrimas de vergonha, ela viu seu amigo Felipe encarando o colega torturador com uma expressão muito séria. A expressão mais séria que uma criança de oito anos pode ter.
A professora resolveu fazer alguma coisa e tomou a carta do aluno, ligou o som novamente e foi tentar consolar a prenda mais chorona de toda a história das festas juninas.
Sentada no chão, abaixo do quadro negro, Carol abraçava os joelhos e só ouvia murmúrios das amiguinhas lhe dizendo que ia ficar tudo bem, que o colega idiota estava indo pra direção... Mas nada disso interessava. Até que ela ouviu a única voz que importava naquela hora.
- Carol?
Ela abriu os olhos e viu seu amigo/amor ainda sério, lhe estendendo a mão. Ela a tomou e se deixou guiar. Entraram engatinhando em um “corredor”, formado pelos pés das mesas de quitutes, encostadas à parede. Ali estavam a salvo dos olhares do resto da sala, protegidos pelas toalhas de mesa que pendiam moles, banhadas por refrigerantes derrubados.
Felipe segurou uma das mãos dela e disse:
- Carol, eu gosto muito de ti. Muito mesmo. Mas é só como amigo... Nós ainda podemos ser amigos?
Ainda remoendo a vergonha recente e se arrependendo de ter escrito a maldita carta, a menina concordou com a cabeça. Tirando a vergonha e o “amor” reprimido que ainda ficariam por algum tempo, estava tudo certo outra vez. Os dois saíram do esconderijo exatamente na hora em que uma música mais lenta começava a tocar. Ele sorriu, estendeu a mão, e encerrou a história daquela festa junina com um final quase feliz:
- Então... Quer dançar comigo?